15/10/2024
Nas últimas duas semanas, três espécies de aves jamais observadas antes apareceram no complexo lagunar de Jacarepaguá: tapicuru, marreca-cabocla e biguatinga. Morador da região e consultor da Iguá Saneamento, concessionária de água e esgoto que atua na Barra da Tijuca e em bairros vizinhos, o biólogo Mario Moscatelli diz que, se não é possível afirmar, ao menos há fortes indicativos de que o trabalho que tem sido feito pela empresa nas lagoas da região está por trás da chegada destes novos moradores. Cerca de seis meses depois do início, ainda há muito a ser feito, mas a natureza demonstra sinais de resiliência e parece reagir. Duas das aves, a marreca-cabocla e a biguatinga, estavam justamente onde os trabalhos de desassoreamento começaram, na Lagoa da Tijuca. Já o tapicuru foi visto na Lagoa de Marapendi.
— As marrecas-caboclas estavam numa área que foi remexida pela dragagem. A máquina fez uma ilha de lama, e o bando estava lá, junto com outra ave, chamada pernilongo, que é preta e branca com pernas vermelhas. Quando fotografei, achei que fosse a marreca-toicinho, que há tempos habita o complexo lagunar. Foi um biólogo da minha equipe que constatou que era outra espécie. Em relação à biguatinga, avistamos dois casais, nos manguezais do condomínio Península. Já os tapicurus estavam num grupo de três indivíduos. São todas aves que, até então, não tinham sido vistas no sistema lagunar. Os encontros são bem casuais. Às vezes, a gente sai e não encontra nenhuma — relata Moscatelli.
As obras, uma obrigação contratual da Iguá, tem duração prevista de 36 meses, período em que a companhia planeja remanejar dois milhões e 300 mil metros cúbicos, o equivalente a 920 piscinas olímpicas, de lodo e sedimentos finos do fundo das lagoas, as quais, há décadas, sofrem com o despejo de lixo e esgoto. No momento, a dragagem está sendo feita na Lagoa da Tijuca, trabalho que vai durar 24 meses, de acordo com a concessionária, que estima ter remanejado 350 mil toneladas de sedimentos desde abril. Ainda serão alvo de intervenção as lagoas do Camorim e de Jacarepaguá e os canais da Joatinga e de Marapendi.
De acordo com o biólogo, se o trabalho não causou, diretamente, a aparição de novas espécies, a situação é ao menos uma coincidência positiva e suscita esperança.
— Isso representa um prognóstico extremamente positivo daquilo que se espera com o processo de recuperação das margens, a dragagem das lagoas, a melhoria da circulação de água entre o mar e as lagoas e a progressiva redução do lançamento de esgoto nesses corpos hídricos. Até dois anos atrás o sistema lagunar era um paciente na UTI à beira da morte. Agora, está apresentando melhoras e saindo da UTI. Espero um incremento progressivo da biodiversidade — avalia.
Bióloga e mestranda em biodiversidade na Escola Nacional de Botânica Tropical, no Jardim Botânico, Caroline Lima, que estuda a avifauna em lagoas urbanas, diz que esses ecossistemas exercem um papel fundamental no desenvolvimento da biodiversidade.
— A aparição de novas espécies de aves anteriormente não vistas no complexo lagunar é um indicativo de que a qualidade ambiental pode estar gradativamente favorecendo a ocorrência delas, que são atraídas pelos recursos disponíveis no ambiente, principalmente aqueles provenientes dos mangues. Em meus estudos, pude observar o aumento da riqueza das espécies de aves proporcionalmente às ações de incremento no habitat, como a revitalização de manguezais. Recentemente, participei de uma campanha de monitoramento nas lagoas da região, e os resultados são animadores. É possível observar ninhos de garças, bandos numerosos de marrecas, colhereiros, maçaricos — explica.
Mais do que a aparição de novas aves, o que chamou a atenção dos biólogos foi a reprodução de uma das espécies, a biguatinga, em meio ao complexo lagunar, conta Moscatelli.
— Observamos um processo de nidificação de biguatinga nos manguezais perto do Península. Podendo fazer ninhos em tantas áreas do litoral, ela escolheu logo a Lagoa da Tijuca. Provavelmente, sentiu que as condições ambientais, embora não ideais, eram suficientes para dar à luz seus filhotes. Isso é bastante significativo, porque, segundo os ornitólogos, a nidificação da espécie no estado do Rio de Janeiro nunca havia sido notificada — explica o ambientalista.
Os trabalhos da Iguá no sistema lagunar que precederam a aparição de novas espécies incluíram a recuperação de quatro hectares de manguezal desde o início de sua operação, em fevereiro de 2022, com a retirada de 225 toneladas de resíduos como pneus, eletrodomésticos, brinquedos e plástico das margens e plantio de 57 mil mudas de mangue-vermelho. Os dejetos sólidos retirados são destinados à reciclagem. Outra ação, com vistas a evitar a chegada de lixo descartado irregularmente, foi o cercamento de sete quilômetros de margem das lagoas do Camorim, da Tijuca e de Jacarepaguá. Agora, começa uma nova etapa do projeto, anuncia Lucas Arrosti, diretor de operações da empresa no Rio de Janeiro.
— Agora, a concessionária avança em uma nova etapa do projeto, no qual criará 350 mil metros quadrados de manguezal na Lagoa da Tijuca, um investimento que chegará a R$ 40 milhões. Nesta nova fase, serão criadas três áreas de manguezal, onde serão plantadas 165 mil mudas de espécies nativas de mangue. Em três anos, serão cerca 240 mil mudas cultivadas, capazes de neutralizar 36 mil toneladas de CO2, emissão equivalente a oito mil carros circulando anualmente — diz Arrosti.
De acordo com Moscatelli, o desenvolvimento dessas ações somado a uma paisagem com uma fauna mais diversa contribuirão para o turismo ecológico e sustentável na região, uma iniciativa que defende há décadas.
— Com um sistema lagunar que ainda têm significativa cobertura vegetal junto às lagoas, se constituindo num corredor ecológico entre os maciços da Tijuca e da Pedra Branca, e o incremento da biodiversidade, a tendência é que o ecoturismo se torne uma das atividades econômicas mais importantes da região. Uma vertente é a observação de aves, que move milhões de dólares em países como os Estados Unidos. Aqui no Brasil, isso já existe no Pantanal mato-grossense. Para que isso aconteça na região, vai ser fundamental a criação do Parque Municipal Natural Perilagunar da Lagoa do Camorim — pontua o biólogo.
Objeto do projeto de lei 3.070/2024, de autoria dos vereadores Carlo Caiado, Tainá de Paula, Dr. Carlos Eduardo e Eliseu Kessler, a criação da Unidade de Conservação, uma sugestão do próprio Moscatelli, tem previsão de ser votada ainda neste semestre. Se aprovado, o parque ocupará uma área de 220 mil metros quadrados às margens do Complexo Lagunar de Jacarepaguá e fará limite com avenidas como Governador Carlos Lacerda, Ayrton Senna e Cláudio Besserman Viana e a Curva Chico Anysio. Entre seus objetivos estão recuperar e preservar áreas de manguezal.
— A unidade de conservação será um instrumento estratégico em termos de ecoturismo no sistema lagunar, porque terá acesso exclusivo de barco e, nos passeios, os visitantes terão uma vista deslumbrante da paisagem e da biodiversidade. Além disso, a estrutura flutuante do parque revelará aos turistas os mistérios pouquíssimos conhecidos dos manguezais, ecossistema geralmente de difícil acesso por conta de seu substrato pouco consolidado, ou seja, envolto em lama — observa Moscatelli. — Temos aves muito bonitas no complexo lagunar, como marreca-toicinho, socoí-vermelho e martim-pescador.
Em 2023, um ano após o início da limpeza das margens pela Iguá, outra ave se tornou mais frequente na paisagem do complexo lagunar: o colhereiro.
— Uma ave que é meu sonho de consumo voltar a ver é o guará, que tem plumagem vermelha e que habita áreas de manguezal. Nos últimos 30 anos, só avistei um indivíduo e uma única vez, na foz do rio Itanhangá. É uma ave extremamente significativa; inclusive, o nome Guaratiba vem da grande presença da espécie na região antigamente — explica o biólogo.
Pelo contrato de concessão, a Iguá deve investir cerca de R$ 250 milhões na revitalização do sistema lagunar. Outro compromisso é a universalização dos serviços de água e esgoto. A empresa diz que, no primeiro semestre deste ano, aumentou em 10% o número de famílias e estabelecimentos com acesso à rede de esgoto. Um dos projetos nesse sentido é a implantação dos Coletores de Tempo Seco (CTS), sistema que intercepta o esgoto despejado nas galerias pluviais, destinando o efluente para a rede coletora formal.
— Em julho, a Iguá concluiu a implantação de cinco pontos de CTS ao redor do Canal das Taxas, no Recreio. Desde então, o sistema desvia até 17 litros por segundo das galerias pluviais da área para as redes da concessionária, reduzindo a quantidade de efluentes direcionados ao Complexo Lagunar e beneficiando diretamente os moradores da região. Com investimento de R$126 milhões, serão mais de 50 pontos de CTS instalados, dos quais 24 serão entregues este ano. Desse total, 19 serão no Arroio Fundo, que abrange bairros como Praça Seca, Cidade de Deus e Gardênia Azul — explica Lucas Arrosti.
Em outra frente, a Iguá deve investir R$ 305 milhões na ampliação da rede de água e esgoto em comunidades da região ao longo de 12 anos. Uma das primeiras beneficiadas é o Parque Dois Irmãos, em Curicica.
— Desde 2023, a concessionária está construindo cerca de sete quilômetros de rede de água e seis quilômetros de rede de esgoto no local, atingindo mais de 11 mil moradores. A região também é atendida pela tarifa social, a fim de garantir o acesso aos serviços de esgotamento sanitário a todos. A previsão é que as obras de expansão da rede sejam concluídas este mês — prevê o diretor de operações.
Para que o florescimento da biodiversidade seja sustentável, porém, outros desafios devem ser enfrentados, avalia Moscatelli.
— O grande problema que ainda assola a região é o crescimento urbano desordenado. Para a conta fechar de forma eficiente, todas essas ações de limpeza, dragagem e saneamento devem ser acompanhadas do ordenamento da ocupação do solo, que depende de um trabalho de fiscalização envolvendo município e estado — destaca.
Em meio à boa notícia sobre o surgimento de novas espécies, uma polêmica envolvendo a Iguá repercutiu na quarta-feira. O maior lago do Parque Natural Municipal Bosque da Barra secou durante intervenções da concessionária para a ampliação em 50% da capacidade da Estação de Tratamento do bairro, que começaram em junho, afetando jacarés, aves e peixes. A gestão da reserva ambiental responsabiliza a empresa pelo problema. A prefeitura, então, ordenou a paralisação das obras por dano ambiental.
A Iguá, por sua vez, afirma que não é possível correlacionar o evento que ocorre no Bosque da Barra com a execução das suas obras e que as atividades seguem todas as condicionantes previstas nas licença ambiental. Diz ainda que a água retirada para viabilizar as obras de adequação da estação é rebombeada em um ponto sinalizado pela administração do Bosque e tem controle de qualidade permanente. E atribui a seca do lago ao período de estiagem.
Fonte: O Globo
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