03/09/2024
"Lamapalooza" e "Tomorrowlama". Foi por esses apelidos que ficaram conhecidas as últimas edições do Lollapalooza e do Tomorrowland, dois dos maiores festivais de música que acontecem no Brasil, depois de a chuva transformar ambos num lamaçal que, no caso do segundo evento, de música eletrônica, levou ao cancelamento de um dia todo de apresentações.
Mas nem sempre tudo acaba em piada. Em novembro do ano passado, na abertura da turnê de Taylor Swift, no estádio Nilton Santos, no Rio de Janeiro, uma fã de 23 anos morreu de calor, e o segundo show da cantora, marcado para o dia seguinte, precisou ser adiado às pressas. Os bailarinos se recusaram a se apresentar naquela temperatura.
Há exemplos a perder de vista. Em São Paulo, o The Town teve sua estreia, em setembro do ano passado, prejudicada pela chuva acima do previsto. Um mês antes, no Rio de Janeiro, Caetano Veloso subiu ao palco do Doce Maravilha com quatro horas e meia de atraso também por causa da chuva.
Mais recentemente, a rave Anacã, em Altinópolis, no interior paulista, foi cancelada, porque o fogo que tomou conta da região no último fim de semana chegou perto do local da festa e, com a fumaça, era quase impossível respirar.
Em comum, esses eventos estão enfrentando os efeitos da crise climática, que tem causado não só ondas de calor acima do esperado, mas temporais fora de época, com rajadas de vento e raios, que ameaçam as estruturas metálicas e põem o público em risco.
A climatologia, como é chamada a média de temperatura e a precipitação de cada mês do ano, já não é mais segura para guiar os produtores. Para se ter ideia, a máxima esperada para novembro na capital fluminense é de 27ºC, mas os termômetros registraram 40ºC no dia do show de Swift, com a sensação de 60ºC.
O assunto já preocupa o governo federal, que acaba de prorrogar para dezembro a obrigação da entrega gratuita de água ao público por parte dos eventos. A portaria do Ministério da Justiça foi criada após a morte da fã de Swift.
Também preocupa alguns produtores, que têm contratado empresas de meteorologia e instalado bases de monitoramento perto dos palcos, com sensores dedicados a captar informações de temperatura, radiação solar, umidade e precipitação, além de velocidade e direção do vento.
O serviço será usado no Rock in Rio, nas próximas semanas, e foi uma das imposições de Madonna para o seu show na praia de Copacabana, em maio, que teve a presença de meteorologistas do Climatempo. Eles também vão cuidar da próxima edição do Tomorrowland, em outubro, e são parceiros da produtora Entourage, responsável por eventos como o Só Track Boa.
O monitoramento do show de Madonna começou na montagem. Os turnos de trabalho eram definidos de acordo com as condições do clima e do mar, assim como os ensaios da artista, que podiam ter seus horários alterados.
"Se estiver quente, não dá para criar uma nuvem e fazer chover, mas é possível mitigar o problema, alterando a estrutura do show, com refrigeração e distribuição de água, por exemplo", afirma o meteorologista Robson Miranda.
Miranda, responsável pelos contratos comerciais do Climatempo, diz que "os shows internacionais se preocupam mais com a crise climática". "Eles fazem de tudo para evitar polêmicas, porque prejudica a imagem do artista, como aconteceu com Taylor Swift, que virou notícia mundial com a morte de sua fã."
A exigência de Madonna era legítima. Em seu país de origem, os Estados Unidos, a música ao vivo também enfrenta dificuldades com o clima.
Há um ano, 70 mil pessoas ficaram ilhadas por dias numa região desértica do estado de Nevada depois que uma chuva intensa, algo inédito nos 30 anos do evento, fez do espaço um lamaçal e interrompeu o trânsito de veículos, que atolavam. Água e comida precisaram ser racionadas, assim como o acesso a banheiros, e um homem acabou morto.
A crise também atinge eventos esportivos, religiosos —no hajj, a peregrinação islâmica na Arábia Saudita, cerca de 1.300 pessoas morreram sob um calor de 37,7ºC— e eleitorais —dez mesários morreram nas eleições da Índia, com os termômetros marcando 48ºC.
Mas os eventos musicais têm suas particularidades, especialmente depois da pandemia, quando o Brasil foi inserido na rota das estrelas do pop.
Para ver de perto Taylor Swift e Billie Eilish ou grupos como Coldplay e RBD, os fãs, sobretudo os adolescentes, acampam por dias em filas, comem pouco, evitam tomar água e usam até fraldas geriátricas para não precisar ir ao banheiro, com medo de perder o seu lugar perto do palco.
Os festivais são mais desafiadores, por serem longos, com mais de 12 horas de apresentações ininterruptas dias a fio, e demandarem um deslocamento de quilômetros no vaivém de um palco ao outro.
O cansaço por si só já pode levar à desidratação e ao desmaio, mas fatores como o calor, assim como o consumo de bebida alcoólica, agravam a situação. Na estreia tórrida de Taylor Swift no Brasil, por exemplo, cerca de mil pessoas desmaiaram, de acordo com o Corpo de Bombeiros.
Os eventos musicais também têm estruturas metálicas de toneladas, que podem sucumbir em meio a um vendaval e ferir o público, como aconteceu no Lollapalooza. Há dois anos, uma torre de três metros de altura, parte de uma ação publicitária de um patrocinador do festival, caiu em cima de um jovem durante uma tempestade.
Os festivais ainda estão sob o risco dos raios, por serem realizados em áreas mais abertas, principalmente no Brasil, o país com a maior incidência no mundo desse tipo de descarga elétrica, de acordo com o Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
Marcelo Madueño, diretor de produção da Entourage, lembra que na estreia do festival Time Warp no Brasil, há seis anos, um vendaval interrompeu as apresentações e levou à evacuação do público para uma área de contenção.
Ele afirma que, se a produção não tivesse um meteorologista de plantão, uma tragédia poderia ter acontecido. "É muito rápido. Se você não tem planejamento, fica sem saber o que fazer. Foi coisa de dez minutos entre o aviso e o início do vendaval", conta.
A criação de uma portaria para exigir a distribuição de água só após a morte no show de Taylor Swift expõe uma fragilidade do setor de eventos em relação à crise climática, na avaliação do executivo.
"Cada cidade tem uma orientação para a emissão de alvará. O Corpo de Bombeiros exige rotas de saídas de emergência, mas não existe uma obrigação para que haja um plano de contingência para lidarmos com as calamidades do clima", afirma Madueño.
Robson Miranda, do Climatempo, diz acreditar que, ao menos, os produtores já estão mais atentos à situação. "Antes a gente tinha um grande trabalho de convencimento dos executivos, mas agora está mais fácil. Falar de mudança climática era um tabu, mas agora as pessoas estão aceitando, e as empresas têm que acompanhar isso."
Fonte: Folha de S. Paulo
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