
21/10/2025
O município de Belém do Pará, sede da COP30, é marcado pela convivência com a água. Com o regime de chuva abundante, suas baixadas —áreas naturalmente alagáveis— são territórios nos quais as cheias periódicas e solos encharcados são um elemento constitutivo, natural e histórico. No entanto, sua urbanização ocorreu em conflito ou, mais recentemente, indiferente a esses processos, o que fez dos alagamentos um problema recorrente. Particularmente em momentos de coincidência de chuvas intensas e maré alta, os alagamentos persistentes trazem incômodo e prejuízos à mobilidade, à saúde, à economia e à vida cotidiana.
A palmeira do açaí é espécie típica de áreas úmidas, conectada desde sempre à paisagem, à cultura e à segurança alimentar da cidade. Refletir sobre sua presença em Belém nos sugere uma alternativa inovadora ao problema urbano das áreas alagadas com base em uma solução ecológica, cultural e econômica: a promoção de açaizais urbanos.
A implantação de açaizais urbanos não é propriamente uma ideia nova. Em muitas áreas da Amazônia, a população cultiva o açaí em áreas urbanas: lotes, várzeas e áreas públicas devido ao uso do fruto. Propor que touceiras de açaí sejam implantadas como parte da infraestrutura verde da cidade apenas explora e sistematiza uma prática popular como projeto intencional de intervenção urbana. Tais plantios funcionariam de forma similar às chamadas "cidades-esponja": absorvendo e regulando a água da chuva, mitigando alagamentos.
Porém, dada a especificidade da palmeira do açaí, seria possível reintroduzir nas áreas urbanas a produção do fruto que é altamente valorizado pela população local como alimento fresco, de alto valor cultural e com potencial de geração de renda. Logo, diferente de soluções baseadas em tecnologias externas, a proposta se apoia em práticas e recursos locais, profundamente ligados à história e ao modo de vida da população de Belém.
Na Amazônia, a água é protagonista. Tentar dirigi-la para fora da vida nas cidades com canais e obras de drenagem tem se mostrado uma opção de altos custos diretos e indiretos, e até pouco eficiente. A ideia de açaizais urbanos lida com a lógica inversa. Trata-se de levar a sério algo que se sabe há muito tempo: o potencial do açaí, espécie adaptada aos ciclos de cheias e vazantes, para potencializar a convivência com a água em áreas urbanas.
Segundo pesquisas conhecidas, uma touceira de açaí adulta, com três ou quatro troncos, consome até 120 litros de água por dia. Não é difícil estimar que a concentração de touceiras, inclusive dentro de cultivos diversos, junto a outras espécies de alta evapotranspiração da região, tem o potencial para reduzir a área e o tempo de alagamento. Temos aí uma infraestrutura viva, que opera com base na biodiversidade local, sem demandar insumos tecnológicos de alto custo.
Como comparação, podemos tomar os projetos de macrodrenagem frequentes em Belém e conhecidos por sua complexidade, altos custos e longos prazos de execução. Além do investimento em obras pesadas, há custos de transação elevados: disputas fundiárias, reassentamentos demorados, resistências sociais e processos licitatórios complexos. Frequentemente, os benefícios demoram anos e até décadas a aparecer.
Embora açaizais urbanos não substituam integralmente as funções dos sistemas de macrodrenagem, eles podem complementá-los, reduzir sua necessidade, seus custos e seus maus impactos. Permitem também experimentações em pequena escala, custo controlado e resultados em menor prazo. O investimento para plantar, manejar e acompanhar áreas-piloto é muito inferior ao das obras convencionais de drenagem e pode gerar externalidades positivas adicionais, como a produção para alimentação e a ênfase na identidade cultural do consumo local da polpa.
Em outras regiões do país, o açaí foi assimilado como sobremesa ou guloseima. Porém, em Belém e outras regiões da Amazônia a polpa fresca é, há séculos, a base da alimentação cotidiana. Esse consumo assegura uma demanda ampla, exigente e estável pelo fruto. A população valoriza imensamente o sabor, aroma e cor da polpa recém-extraída. Isso dá importância à proximidade entre produção, despolpa e consumo.
Assim, implantar açaizais urbanos seria muito positivo para a economia local. Comunidades "afetadas" pela implantação do cultivo, podem receber em contrapartida concessões de cultivo e pontos de comercialização. Numa operação um pouco mais complexa, receberiam benefícios da valorização imobiliária resultante da transformação das áreas degradadas.
Estão aí oportunidades para que agentes locais se insiram ou se reposicionem na distribuição dos benefícios da infraestrutura verde e da economia do açaí. Essas compensações ajudariam a mitigar conflitos fundiários e sociais e converter resistência em adesão comunitária.
Outro ponto positivo é a possibilidade de começar em escala reduzida e controlável. Áreas reduzidas, praças, margens de igarapés ou terrenos públicos subutilizados podem ser prospectadas para conversão em açaizais experimentais. Projetos-piloto permitiriam testar densidade de plantio, adaptação à área urbana, integração com drenagem, aceitação social, dentre outros aspectos. O aprendizado acumulado embasaria ações em outras áreas ou municípios semelhantes. Trata-se, portanto, de solução incremental, flexível e baseada em evidências.
O conceito de cidades-esponja, difundido pelo arquiteto chinês Kongjian Yu, recém-falecido, ganhou força como estratégia de adaptação climática de áreas urbanas. Usar áreas verdes e soluções baseadas na natureza para ampliar a absorção de água no solo, reduzir enchentes e melhorar a qualidade ambiental. Os açaizais urbanos são uma versão amazônica dessa infraestrutura. Em vez de gramados ou parques estilizados, trata-se de emular um ecossistema nativo, com funções ecológicas comprovadas, produzindo para o consumo local e com valor econômico significativo.
A discussão e o experimento com açaizais urbanos podem representar uma oportunidade para o município, em sintonia com sua própria história e geografia. Ao invés de enfrentar a natureza com projetos caros e lentos, Belém pode buscar uma reconexão aos processos naturais do trópico úmido, usando a biodiversidade local como infraestrutura viva. É a proposta de uma estratégia prática, de baixo custo relativo e alto potencial de retorno.
Fonte: Folha de S. Paulo
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